2012-01-20

Memória do colóquio Ver o invisível, dizer o indizível, no dia 6 de Janeiro, no Auditório de Serralves. Reportagem da Agência Ecclesia:

2012-01-10

Vimos o invisível, dissemos o indizível. E há ainda tanto para ver e tanto para dizer! No dia 6 de Janeiro, em Serralves, a Pastoral da Cultura da Diocese do Porto promoveu um colóquio Ver o invisível e dizer o indizível, com a realização de duas mesas redondas: uma com o teólogo João Duque e o poeta Jaime Rocha e outra com o arquiteto Siza Vieira e o escritor Valter Hugo Mãe, moderadas por José Rui Teixeira, do Secretariado.
Foi uma tarde memorável, com um auditório quase cheio, ainda que se tratasse de uma iniciativa pioneira e arriscada, promovida a meio de uma tarde de sexta-feira. Ela ocorre na sequência de um trabalho que a Pastoral da Cultura do Porto tem vindo a desenvolver, com artistas do Porto, em torno da arte e do sagrado.
As crises são tempos importantes para a (des)aprendizagem e os artistas podem aproximar-nos dos novos verbos e do Verbo. Assim se fez, neste dia de início do ano de 2012, um ano proclamado como o de todas as crises. Os poetas, e as crianças, como diz Manoel de Barros, ao mudarem a função de um verbo, fazem o verbo "delirar". Aos poetas cabe o processo de criação, "fazer nascimentos".
A sessão deambulou em torno do acto e do tempo de criar, do modo e da função do processo criativo. Jaime Rocha, poeta e dramaturgo, falou-nos da "sua" Nazaré e dos pescadores que falavam com o mar, percorrendo as longas areias, partilhando com ele a sua dor, a perda dos companheiros e dos familiares desaparecidos que tardavam a chegar, enquanto as mulheres, em casa, conversavam, em voz alta, com os seus santos devotos e com Deus. "O poeta dá vida a esse sofrimento, narra o que está para lá das coisas, escavando no seu interior". Confessa que a sua poesia pretende construir uma ordem, enquanto o seu teatro remete-o para o caos, para uma desordem que explode, mas ambos concorrem para o seu equilíbrio pessoal.
João Duque enquadrou o indizível e o invisível no acto de criação, sublinhando que "O poeta não produz, dá vida". Assinalou a dicotomia entre o trabalho do compositor que dá vida ao silêncio e ao som e o do instrumentista, que é quem executa a obra e produz a música. O invisível e o indizível estão na obra que nasce, na obra de arte, onde é possível encontrar o sentido das coisas. "É entrando no sentido das coisas que vamos dando a ver a outros esse sentido e descobrindo, continuamente, o que não se vê, mas que está lá para que o vejamos". Por isso, o invisível está contido no visível o que constitui um grande repto para todos nós: "invisível é o que habita no interior do que está lá, o que permite ouvir os sons e os sentidos que habitam no interior das palavras ou ouvir as palavras e sofrer os efeitos cerebrais que elas nos provocam."
Jaime Rocha evocou os quadros de Magritte onde "já está tudo lá dito" e tudo quanto eles lhe transmitem e inspiram.
João Duque, apontando o símbolo do Secretariado Diocesano, projectado na tela, "Cristo", de José Rodrigues, sublinhou a necessidade de, ao olharmos Cristo desfigurado, não deixarmos de olhar para o homem que está à nossa volta, cuja desfiguração está tão escondida e tão invisível que urge encontra-la. A arte tem esta "função" de trazer para fora a desfiguração, para que, olhando-a, a possamos ver, sentir e interpretar como um apelo permanente à paz e à justiça.
Na segunda parte deste "encontro", Valter Hugo Mãe, a propósito do acto da criação literária, afirmou: "escrevo para dizer o que não sei; escrever é ir à procura do que não sei, do melhor que eu posso ser".

Joaquim Azevedo, Siza Vieira e Manoel Oliveira.


Uma das surpresas desta bela tarde foi a presença do cineasta Manoel de Oliveira, uma vez que, imediatamente, a realidade se alargou: de quatro passamos para cinco palestrantes.
Manoel de Oliveira começou por revelar uma capacidade única de se rir daquilo que ainda o faz correr. Do alto dos seus 103 anos, disse: "Não sei se tenho muito para dizer, nós fazemos fitas. Fitas não são mais do que fitas!" Referindo-se a Álvaro Siza, falou de duas das suas obras: "A Casa de Chá de Leça e a Igreja do Marco, duas obras excepcionais de Siza Vieira", acrescentando: "A Casa de Chã não se cinge ao espaço interior, expande-se para o oceano e para o absoluto. Os rios desaguam no absoluto que é o mar e perdem a personalidade de rio. A água do mar evapora-se e assim origina novos rios que voltam para o mar" e finalizou dizendo: "A Casa de Leça abre para o infinito, para o transcendente".
Sobre a igreja do Marco sublinhou a dimensão espiritual: "A porta, altíssima, parece ser a porta para o céu e quando se entra, o Cristo aparece à esquerda na parte detrás do altar, onde de uma espécie de chaminé desce uma luz, vinda de cima. É uma outra espécie de absoluto, que abre para o além da morte".
Interrogou-se: "será possível o cinema ser expressão do indizível?" Afirmando de seguida: "O cinema é a expressão do dizível, a música mostra o invisível. O invisível, para mim, são os sentimentos. É a alma, o nosso espírito. É por ai que a gente vive, pelo invisível. Nunca sabemos qual o nosso futuro, ele é um enigma. Estamos no presente. E o que é o presente? É a fábrica do passado! E no passado está toda a nossa sabedoria. O futuro é o invisível, nunca sabemos o passo que vamos dar. O futuro é um enigma e como tal não podemos falar dele. O que me dá um grande descanso!" (risos).
Valeu a pena. Para o ano, no início do ano, haverá mais: é preciso continuarmos a ligar fé e razão, a arte e o sagrado, o invisível e o visível, afinal tão juntos e tão separados, continuar a perscrutar o sentido destes dias críticos (em alguma medida tempos últimos) em que estamos mergulhados, para não sermos os novos apanhados! A Pastoral da Cultura da Diocese do Porto continuará a ser uma promotora deste encontro, uma sementeira de novos possíveis e de um horizonte mais humano para a nossa vida, tão desfigurada ela anda, à semelhança de um Cristo que assim, na cruz, morreu Redentor. | Joaquim Azevedo

2012-01-07

Ontem, no Auditório de Serralves, organizado pelo Secretariado Diocesano da Pastoral da Cultura, decorreu o colóquio Ver o invisível, dizer o indizível.
Pelas 16 horas, o Professor Joaquim Azevedo acolheu as pessoas, que praticamente encheram o auditório, e apresentou o colóquio. Depois, duas conversas informais, moderadas por José Rui Teixeira, juntaram o escritor Jaime Rocha e o teólogo João Duque, o arquitecto Siza Vieira e escritor Valter Hugo Mãe.

João Duque, José Rui Teixeira e Jaime Rocha.


Jaime Rocha [1949] frequentou a Faculdade de Letras, em Lisboa, e viveu em Paris nos últimos anos do Estado Novo. É autor de uma vasta obra no domínio da ficção, da poesia e do teatro. Em 2010 publicou Necrophilia, livro com que termina a sua impressiva Tetralogia da Assombração: Os que vão morrer [2000], Zona de caça [2002] e Lacrimatória [2005].
João Duque [1964] doutorou-se em Frankfurt, na área da Filosofia da Arte. É professor e presidente do Centro Regional de Braga da Universidade Católica. Autor de uma vasta obra, fundamentalmente nos domínios da Teologia e da Filosofia, João Duque realizou estudos de órgão, composição e direcção coral.
Esta primeira conversa foi muito interessante, na medida em que, para além da poesia, do teatro e da música, possibilitou um olhar teológico e filosófico sobre a visão do que não se vê [do que ainda não se vê...] e sobre a dicção do que não se diz [do que ainda não se diz...]. Falámos de modos de ver e modos de dizer, de intuição, de aparições, de intérpretes e interpretações... Falámos do caos que o teatro impõe e do sentido com que a poesia reordena a realidade. Começámos a falar do modo como o poeta observa a morte e terminámos a falar do modo como o teólogo percebe o processo de desfiguração do Homem... coisas tão oníricas e hieráticas como os naufrágios, a ausência do que se vê ou a presença do que é [ainda] invisível.

Valter Hugo Mãe, José Rui Teixeira e Siza Vieira.


Siza Vieira [1933] estudou na Escola Superior de Belas Artes do Porto. A sua obra fala por si... Trata-se de um dos mais notáveis e reconhecidos arquitectos contemporâneos, e a consciência que todos temos disso vale mais do que qualquer nota biográfica. Entre os seus projectos, espalhados por todo o mundo, destaco o Museu de Serralves ou a Igreja de Santa Maria, no Marco de Canaveses.
Valter Hugo Mãe [1971] estudou Direito, mas foi o poeta que se afirmou, numa obra vasta, reunida em 2010 em contabilidade. Com o nosso reino, em 2004, nasce o ficcionista. Recebe o Prémio José Saramago em 2006, com o remorso de baltazar serapião; seguem-se o apocalipse dos trabalhadores [2008], a máquina de fazer espanhóis [2010] e o filho de mil homens [2011].
Esta segunda conversa teve uma maior componente de deriva. Falámos do processo que separa a visão da revelação e falámos do silêncio que precede a palavra... e, ainda assim, a nossa conversa foi habitada pelo que não se vê para lá do que se revela, pelo que não se diz para lá da palavra. Falámos do tempo, do tempo que é necessário entre o que se vê e o invisível, entre o que se diz e o indizível, o tempo... Falámos do trabalho partilhado e da solidão. Falámos dos olhos que não vêem e dos poetas serem esses homens que vêem dentro. Houve um instante em que Siza Vieira disse que "um poema com qualidade é um relógio suíço ao quadrado", porque é uma obra de precisão e rigor inigualável.

José Rui Teixeira, Manoel de Oliveira e Valter Hugo Mãe.


Entre as pessoas que se reuniram ontem no Auditório de Serralves, esteve Manoel de Oliveira. O que posso escrever sobre Manoel de Oliveira?... No final do colóquio o notável cineasta, com 103 anos, silenciou-nos... logo com as suas primeiras palavras: "Estou aqui atraído pelo invisível". Este colóquio ['colóquio' significa, precisamente, 'conversa'], que começara pelas 16 horas com as palavras do Professor Joaquim Azevedo, terminou, quatro horas depois, com uma intervenção inesquecível do Mestre Manoel de Oliveira. | JRT

Fotografias: Pedro Gabriel Rocha.

2012-01-05

2012-01-01

Emil Nolde [1867-1956], A Ceia.


O domingo da OITAVA DE NATAL coincide com o dia 1 de Janeiro de 2012, DIA MUNDIAL DA PAZ, 1º dia de um novo o ano.
O tempo é neutro, por isso é estranho que se enfatize tanto a novidade que este dia representa, desde Sidney ao Rio de Janeiro, desde Tóquio a Nova Iorque. Entre festejos, com mais ou menos fogo-de-artifício, entre brindes e desejos para o novo ano, as superstições e os medos dos homens desfilam de mãos dadas, com matizes milenaristas e apocalípticos quando a festa acaba e a ressaca não recorda os melhores desejos para o tempo novo que neste dia, simbolicamente, se inaugura. É normal. A festa dos loucos termina sempre mal e há em tudo isto uma loucura aceitável no sentido de razoável, razoável no sentido de aceitável.
No contexto dos escritos de S. Paulo, há três tipos de tempo: o 'chrónos', o 'aiôn' e o 'kairós'. 'Chrónos' é o tempo de vida, o espaço de tempo, o tempo biográfico que nos permite as tábuas cronológicas. 'Aiôn' é o tempo de sempre, o tempo contínuo… o tempo do mundo, das eras, dos períodos epocais, o tempo físico da imanência. 'Kairós' é o tempo oportuno para a salvação, trata-se do tempo da esperança, o presente cheio de futuro, o tempo em que a Graça de Deus redime o tempo… o tempo cronológico e o tempo aiónico.
Os cristãos também celebram o tempo cronológico e o tempo aiónico, na medida em que participam do 'chrónos' e do 'aiôn', como toda a matéria orgânica e inorgânica, das bactérias às mais longínquas estrelas… mas fundamentalmente celebram o 'kairós', o tempo kairológico, esse presente já não redutor e ensimesmado, esse presente criativo e partilhado, em que participamos de um projecto de redenção e que nos permite dizer que hoje celebramos a Paz como condição de redenção universal.
Celebrar a Paz não significa apenas desejar a Paz, significa que nos compreendemos como construtores da Paz, responsáveis pela Paz, das nossas casas às ruas das nossas cidades e aldeias, do Paralelo 38 N [que separa a Coreia] às trincheiras e valas comuns que há no mundo, à sombra de muros e muralhas ainda por derrubar. Falo da Paz que começa no momento em que as relações deixam de ser relações de poder, entre irmãos ou esposos, entre pais e filhos, entre vizinhos… Falo da Paz como projecto de vida, em contagem crescente dos dias para os meses, dos meses para os anos, dos anos para os séculos… O tempo kairológico a invadir o tempo cronológico e o tempo aiónico, e a redimir as nossas vidas. | JRT